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O massacre da expedição do Padre Calleri

O massacre da expedição do Padre Calleri

Antes de tudo, “Ainda não posso acreditar como saí vivo desta aventura”. Assim definiu o mateiro Álvaro Paulo da Silva, conhecido como mineiro alto, único sobrevivente da expedição do padre Calleri. Mineiro, em depoimento ao comando geral das operações de buscas e salvamento da expedição.

Álvaro tinha passado sete dias na selva, sozinho, tendo apenas algumas latas de salsicha, de feijoada e farinha, além de um cachorro e uma espingarda. Mineiro alto foi encontrado por dois caçadores e ficou aos cuidados dos então geólogos Oto e Gilberto, do Ministério das Minas e Energia, que realizavam serviços na selva.

O plano da expedição inspirada pelo então engenheiro Altamiro Veríssimo da Silveira, chefe do 1º Distrito Rodoviário Federal, foi concluído em 6 de agosto. Nele era previsto o contato com todos os grupos indígenas que ocupavam a região Alalaú-Jauaperi, do Rio Branco até os limites com a Guiana Britânica (ou Guiana Inglesa), hoje conhecida como República da Guiana; fazer amizade com os silvícolas; afasta-los assim das suas residências dentro da área total do movimento da BR-174; e o aldeamento e organização dos silvícolas numa zona estrategicamente escolhida.

O propósito da expedição, era a então integração da Amazônia a partir da construção da BR-174, e passava pelo afastamento dos índios do local onde a estrada passaria.

Participaram da elaboração do plano a então Prelazia de Roraima em colaboração com a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, o Departamento Nacional de Estradas e Rodagens – DNER, Departamento de Estradas e Rodagens do Amazonas – DER-AM, Ministério da Aeronáutica e Grupamento Especial de Fronteiras do Exército.

A expedição do então padre Calleri saiu de Manaus, de avião, rumo a São Gabriel da Cachoeira, no dia 14 de outubro de 1968. De lá, transportada por helicóptero, foi para o acampamento do Departamento Estadual de Estradas e Rodagens – DER-AM, situado às margens do igarapé de Santo Antônio, distante 239 quilômetros de Manaus.

A expedição era constituída, além do padre, por nove pessoas, duas delas mulheres, conforme relação a seguir: os mateiros Álvaro Paulo da Silva e Manuel Mariano Ferreira; operador de fonia João, conhecido como cara de onça; cozinheiro Manuel Nascimento; funcionários do DNER Benigno Ribeiro Mendes, conhecido como Piauí, Eduardo Francisco de Oliveira, Aragão Rodrigues de Oliveira; Marina Pinto da Silva, mulher de Aragão e Maria Mercedes Sales. A intenção do padre ao compor a expedição com a presença de mulheres, era mostrar aos índios que a missão tinha assim fins pacíficos.

Além de mantimentos e dos presentes para serem trocados com os atroaris, a expedição levou consigo quatro revólveres – três de calibre 38 e um de calibre 32 – uma pistola Beretta (do padre Calleri) e cinco espingardas.

No acampamento do DER-AM a expedição ficou alguns dias, uma vez que o padre Calleri teve que voltar para Manaus para completar alguns entendimentos e trazer parte do material que, por excesso de peso, havia ficado na capital. Padre Calleri retornou no dia 22 de outubro, data em que a expedição iniciou o seu deslocamento no sentido Leste-Oeste, através do igarapé de Santo Antônio, em um barco com motor de popa, equipado com aparelho de rádio, transmissor e receptor.

O grupo expedicionário percorreu sessenta quilômetros nos dois primeiros dias, até alcançarem a primeira maloca dos índios atroaris. Por se encontrar desabitada, recebeu o nome de Maloca Queimada. Lá foram achados vestígios da presença da Fundação Nacional do Índio – FUNAI.

Padre Calleri, depois de pressentir a dificuldade de navegação, já que o igarapé de Santo Antônio se estreitava, decidiu dividir a expedição em dois grupos. Assim, na Maloca Queimada deixou três homens e uma mulher: o cozinheiro Manuel, o funcionário Benigno, o então mateiro Eduardo e Maria Mercedes.  O grupo de seis pessoas sob o seu comando seguiu em direção ao Oeste, a procura de outras malocas.

Entre os dias 24 e 26 a expedição se locomoveu com dificuldade, até alcançar uma região pantanosa, denominada Chavascal, onde pernoitou. No dia seguinte percorreu mais alguns quilômetros, até chegar a uma nova aldeia com duas malocas, uma delas em construção. Pernoitaram um pouco afastado para não chamar a atenção, no mesmo local iniciaram assim a construção do acampamento e a montagem do aparelho de rádio.

Às quatro horas da madrugada foram acordados com o cantar dos galos, o que sinalizava a presença de silvícolas nas proximidades. Com a intenção de atrai-los, a pedido do padre, o mateiro Álvaro deu três tiros para cima.

Os primeiros grupos de índios acompanhados de índias e crianças foram chegando amistosamente. Levaram e ofereceram aos expedicionários flechas, bananas e outros produtos, e os convidaram a visitar as suas malocas. Os grupos de índios foram se juntando até a chegada do cacique Maruaga, que abraçou o então padre Calleri e lhe ofereceu uma espécie de vitamina de banana (banana amassada numa cuia). Em sinal de amizade o cacique Maruaga enfiou o dedo na boco e, com este molhado de saliva, o passou nos lábios do padre.

À noite o padre retribuiu os presentes, seguindo o método de não agir de maneira paternal, apenas dar alguma coisa em troca de outra ou de algum trabalho feito. Calleri foi até a maloca onde estava o cacique e lhe entregou tesouras, fósforos, anzóis e facões.

As relações com os índios seguiam muito boas, tendo eles ajudado, inclusive, na construção do acampamento da expedição.

O clima permaneceu amistoso até o dia 27 de outubro, quando o mateiro e o padre, que estavam com os atroaris em suas malocas, tiveram que voltar para o acampamento, tendo os índios como guias. No meio do percurso, os índios, que conheciam a estrada, começaram a esconder o caminho, entrando pelo mato e fingindo não conhecer a picada aberta. Ainda no trajeto de volta os atroaris começaram a dar outras demonstrações de agressividade, batendo nas nádegas com força e estalando o queixo. Depois de duas horas chegaram ao acampamento, onde o padre lhes ofereceu comida, mas eles recusaram. Ficaram muito tempo parados, desconfiados e com medo do cachorro pertencente ao mateiro Álvaro.

No dia seguinte, 28, segunda-feira, seguindo em seu depoimento, mineiro alto amanheceu com um pressentimento ruim, achando que “a barra já estava ficando meio pesada”. Procurou o padre e lhe disse que não queria mais ficar. O missionário teria concordado com a sua decisão de partir, com pressentimento de que o ambiente estava ficando desfavorável e que em nove dias retornaria com a expedição, pois não iria a mais nenhum acampamento.

Outra vez a expedição foi dividida, ficando quatro no acampamento e dois retornando, de canoa, ao encontro do primeiro grupo, que tinha ficado na Maloca Queimada.

Na manhã de segunda-feira, antes da partida do grupo, os índios retornaram ainda mais agressivos, cuspindo no rosto dos expedicionários e recusando os presentes.

O mateiro diz em seu depoimento que um incidente pode ter contribuído para agravar ainda mais as relações entre os membros da expedição e os atroaris: o padre João Calleri encontrou um índio mexendo nos pratos do acampamento e o advertiu rudemente, utilizando-se da palavra maripanã, que quer dizer arma de fogo.

Na noite do dia 28 de outubro, com muito medo, nervoso e rezando sem parar, o mateiro optou por dormir fora do acampamento, tendo retornado somente na manhã seguinte.

No dia 30 Álvaro encontrou, próximo a maloca, um corpo de homem estirado, depois outro corpo de mulher, supostamente o de Maria Mercedes, por que coincidia com a roupa que ela usava. Esperou anoitecer, era noite com chuva e os índios não apareceram. Voltou ao acampamento, pegou o cachorro, algumas latas de salsicha, uma de feijoada, farinha e espingarda. Foi até a praia, construiu rapidamente uma jangada e desceu o rio.

No dia 5 de novembro a jangada virou, resultando na perda da farinha e do que restava de conserva. A espingarda estragou. Conseguiu chegar até a praia e lá dormiu. De manhã foi achado por caçadores que lhe deram peixe e café. Os geólogos Oto e Gilberto, que trabalhavam naquela área, chegaram de canoa e o acolheram. Álvaro permaneceu com eles até o dia 23, quando seus trabalhos se encerraram. De lá com ele seguiu para Itacoatiara e posteriormente para Manaus.

Após depoimentos prestados pelo mateiro, a FAB partiu em busca da expedição do padre João Calleri. Dos aviões da FAB três corpos foram vistos numa clareira, próximo à bacia dos rios Alalau e Jauaperi. De helicóptero, seis homens chegaram ao local, mas não encontraram nenhum corpo, provavelmente haviam sido retirados pelos índios atroaris.

O depoimento de Álvaro continha contradições e levantou suspeitas de amigos e irmãos da então Prelazia de Roraima, de alguns setores da FAB e na Fundação Nacional do Índio – FUNAI.

A primeira porque havia, em poder do padre Silvano Sabatini, procurador da Ordem de Consolata, um rádio passado pelo padre João Calleri, que informava, sem citar nome, a fuga do mateiro no dia 28, enquanto o mateiro afirmara, em depoimento, que ficara com a expedição até o dia 31, quando, segundo conta, teriam sido massacrados os primeiros missionários; outra pelo fato de ele, sozinho, ter visto dois corpos próximo à maloca dos atroaris e depois ter voltado ao acampamento e construído uma jangada antes de fugir; ainda por dizer que o padre havia ameaçado o índio que flagrou mexendo nos pratos dos expedicionários; e até a hipótese de ele ter estado antes com aqueles índios e aprontado algum ato que os tenha desagradado.

O padre era financiador de parte da expedição e dirigente da Comissão Pró-índio da prelazia de Roraima, um dos melhores órgãos sobre índio existente no Brasil.  Dúvidas, portanto, pairavam, mas o conjunto do que narrara era verossímil e em todas as reinquirições sustentou a mesma história.

No dia 27 de novembro, homens do PARA-SAR – ‘PARA’ de paraquedistas, ‘SAR’ do inglês Search and Rescue, “busca e salvamento” -, então  esquadrão paraquedista de Operações Especiais e Busca e Resgate da Força Aérea Brasileira, encontraram novos objetos próximo ao local onde teriam sido vistos os cadáveres dos expedicionários do padre Calleri, confirmando as suspeitas de que todos haviam sido massacrados.

Entre os objetos, viveres deteriorados, um par de botas novas, 13 lâmpadas em bom estado. Haviam diversos bocais, um saco de macarrão, pedaços de carne seca estragados, três chapéus de palha, um deles cortado a facão, medicamentos diversos, vidros de remédios vazios, distintivos da expedição, sacos plásticos, pedras de isqueiro e espoletas para balas não deflagradas. O uso de lâmpadas deve-se ao fato de que a expedição levou um motor Honda. Quanto às botas, soube-se depois que o padre levou quatro pares sobressalentes para possíveis eventualidades.  Nenhum corpo foi encontrado.

O depoimento do mateiro, antes questionável, ganhava crédito.

Apenas um Catalina 6525 e um helicóptero SH-1D do SAR, com a ajuda de um Aerocomander do então DNER foram empregados na busca de salvamento da missão chefiada pelo padre Calleri. Até aquela data ainda era uma incógnita o paradeiro do padre, seis homens e duas mulheres.

Também intrigava a todos a afirmação de alguns sertanistas, conhecedores dos costumes dos atroaris, de que quando estes matavam brancos, abandonavam os corpos no local e fugiam.

Finalmente no dia 30 de novembro, ossos e crânios de oito membros foram encontrados espalhados em diversos lugares, dentre eles o crânio do então padre Calleri. No dia seguinte foi encontrada a última cabeça, poucos metros acima do local onde estavam as demais, na Maloca da Esperança. No mesmo dia os restos mortais chegaram a Manaus trazidas por um Catalina da FAB.

A conclusão dos sertanistas João Américo Peret e Gilberto Alves Pinto é de que os atroaris agiram com cautela. Primeiro foram eliminando os homens aos poucos, à medida que chegavam à Maloca da Esperança. Os instrumentos utilizados foram a borduna, uma espécie de cassetete grosso e pesado, flechas e facão, de acordo com as marcas encontradas nos corpos. A maioria dos crânios localizados tinham afundamento na parte posterior do lado direito, revelando que os expedicionários foram abatidos por trás, com golpes na cabeça. Outros tinham as costelas fraturadas e marcas de pontas de flechas.

Alguns corpos tinham as mãos amarradas com cipó, indícios de que tinham sido amarrados e arrastados, pelo pescoço, do local onde foram abatidos para as margens do rio.

Quando os índios ajudaram na construção do acampamento, o padre Calleri não lhes recompensou imediatamente pelo trabalho, o que pode assim ter causado os primeiros atos de desentendimento.

Os atroaris mais próximos de Manaus, registre-se, mantinham assim contato com os brancos. Os que viviam distantes, próximos à então margem sul do Alalaú, eram arredios e profundamente hostis para com os brancos e até mesmo para com os seus irmãos. Os atroaris acostumados a manter contato com os brancos chamavam seus irmãos distantes de homens maus ou murupá.

Padre João Calleri tinha como princípio que índio não se pacifica e sim se aproxima para evitar choques com os brancos, vez que ele vive em paz em sua terra.

A última mensagem do então padre Calleri: “Acabamos de fazer, com os índios, a segunda e última viagem e o transporte do material do acampamento do Abonari. O nosso sistema, nesta expedição preliminar, é o seguinte:  mostramos inicialmente que somos trabalhadores e não aventureiros. Depois fazemos o índio participar de nossa atividade para que a aprecie e não a destrua e usamos com eles o critério da justa recompensa, e não o da doação”.

Nos primeiros, continua o padre “estamos alcançando bom sucesso. No terceiro item a luta é duríssima: se não voarem as flechas, devemos ao Deus Pai e ao nosso extremo de vigilância e reflexão…”. “… Com extrema facilidade passam do sorriso aos gestos mais violentos para nos perturbar. Até que isso seja artifício, continuaremos firmes no nosso princípio: disciplina com a justa recompensa…”.

“Ontem à noite fomos obrigados a estudar um meio para comprar com objetos todos os arcos do grupo para podermos viajar mais sossegados”.  Disse o então padre Calleri em sua última mensagem do dia 31 de outubro. “…Hoje de madrugada, um dos nossos melhores deixou a expedição. A realidade é muito difícil. Aqui a boa vontade, a união e serenidade de toda a equipe é maravilhosa. Saudações, Pe. Calleri”.

Isso reabilitou, em parte, o mateiro Paulo Álvaro da Silva, ficando claro que ele realmente permaneceu com a expedição até o dia 31 e não até o dia 28.

“Não se deve atribuir o fracasso da expedição apenas ao padre Calleri. O DNER e a FUNAI têm suas parcelas de culpa, pois concordaram em dar plenos poderes para o trabalho, retirando qualquer apoio de fora à missão. Ao padre faltou tato para lidar com os indígenas, talvez tenha usado autoridade excessiva. A Funai pecou pela omissão, entregando-lhe todos os poderes, o DNER ao permitir a paralisação das obras de construção da então BR 174”.

A estrada estava com 180 quilômetros desmatados na terra dos atroaris, próximo do local onde esteve a expedição do padre Calleri, 300 operários trabalhavam. Os trabalhos de desmatamento haviam sido assim suspensos quando a expedição deixou Manaus. Em última instancia, os trabalhadores poderiam der dado cobertura e refúgio aos expedicionários.

Os sertanistas diziam que o então padre Calleri pecou ao agir com dureza e só oferecer presentes em troca de trabalho dos atroaris. Os mesmos acostumados a uma relação de receber presentes em troca de nenhum esforço. Os índios estranharam assim o novo comportamento e reagiram violentamente. O padre também teria confiado demasiadamente em sua capacidade e subestimou a reação e psicologia indígena.

Everaldo Ribas, coordenador geral das operações, falou da fuga do mateiro Álvaro: “Ele conhece muito bem a selva e sabia dos perigos que estava correndo. Seu instinto de conservação falou mais alto, e ele procurou escapar o mais breve possível”.

Segundo o padre Angelo Maritano, primo do então padre João Calleri, ele sempre quis ser missionário e sua primeira ideia era ir para a África. Dentre o material que ele mais consultava estava o livro Canto do Amor na Floresta, do missionário da Congregação de Monsenhor Comboni. Tal missionário que teve o mesmo fim. Na última página deste livro, o padre Calleri havia escrito: “Este é um homem que deve ser seguido até o fim”.

Em suma, o massacre da expedição do padre Calleri tem acolhimento na assertiva do professor Darci Ribeiro. Quando este se refere a relação entre o branco e o índio no Brasil. “Ninguém duvidará, porém, de que na perspectiva de um índio nós somos a tribo feroz. Tribo que avança movida por cobiças insanáveis e armados de pestes e trabucos”.

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